quinta-feira, 22 de abril de 2010

O Desenvolvimento do Narcisismo na Criança e a Solidão do Adulto - Uma Pequena Introdução.













Quando uma criança nasce é uma fonte de potencial. Uma criança é potencialidade. De forma a manifestar-se e assim explorado, esse potencial encontra-se em grande medida nas mãos do adulto. Todo o potencial da criança é desenvolvido através de relações sociais e a relação mais predominante nos seus primeiros anos de vida, é em regra geral, a relação mãe/fiho(a).  A criança chega ao mundo com uma potencialidade genética que foi herdada ao longo de milhões de anos de evolução de vida neste planeta, e em geral, os nossos genes são os agentes dessa potencialidade. Os genes estão no núcleo das nossas células, nos nossos cromossomas, e ditam aquilo que Pode ser feito - só há uma coisa em que os genes não ditam - Como vai ser feito. Essa característica vai em grande parte ser ditada pela relação entre mãe/ filho e como se interligam as ligações celulares nos campos afectivos emocionais no cérebro.

Quando o bebe nasce, de acordo com as fases de desenvolvimento proposta pela psiquiatra infantil Margareth Mahler, o bebé entra na Fase Autista. Prolonga-se, sensivelmente ate aos primeiros 4 meses de vida. O bebé está imerso com a mãe, não existe uma noção de separação de ‘objectos’. Em termos psicanalíticos, o termo objecto significa ‘pessoas’ (Object Relations).

Portanto, não existe diferenciação de objectos - para o bebé - a mãe é uma parte de si mesmo, de forma a obter a gratificação de todos os requisitos físicos e psicológicos, assim que necessita de obter essa mesma gratificação. É extremamente importante que a mãe (The Tigress Mother), esteja sempre em sintonia com o bebé e num constante estado de alerta de forma a satisfazer as necessidades do bebé. Num prisma neurológico, é uma fase muito sensível – a partir do ultimo trimestre até ao segundo ano de vida.

Os genes continuam a formar o seu campo de acção, por exemplo, são bastante influenciados por neuroquímicos tais como Cortisol (hormona do stress) que em demasia pode danificar substancialmente a forma como as células cerebrais se vão desenvolver e conectar. Portanto, o potencial genético existe, assim como a potencialidade das células cerebrais, todavia a característica específica de cada indivíduo será formada e ditada pela qualidade de relações sociais. A relação entre mãe e o bebé, é uma relação psico-biológica que é influenciada por ambos os agentes (mãe/filho).

Voltando à Fase Autista do bebé, a função da mãe é proporcionar um apoio onde permite que este consiga auto-regularizar e formar a sua auto- estima. Este período de vida é designado de ‘Narcisista Primário’ (Sigmund Freud). O bebé só está interessado em ter os seus desejos e necessidades imediatamente satisfeitas. Não existe uma noção de identidades diferentes entre a mãe e filho, pois o ego do bebé ainda não adquiriu uma noção de “entidade própria e autónoma” em relação à mãe. 

Não se esqueça que o ser humano nasce prematuro. Há milhões de anos, quando começamos a andar (bípedes), o período de gestação nas mulheres foi sofrendo transformações. Pensa-se que a dada altura da evolução humana, o período de gestação tenha sido de 1 ano e seis meses a 2 anos. A partir da altura que o bebé nasceu, aos nove meses, o seu cérebro não está completamente desenvolvido (nas ligações orbital frontal córtex e no lobo temporal - área das emoções).

Sensivelmente a partir do 4º mês de vida, a segunda Fase do Desenvolvimento (Sub- dividida em 4 Sub-Fases) começa a constelar-se - Fase ‘Simbiótica’. A primeira Sub-Fase da Fase Simbiótica é a Fase da Diferenciação.

Na Fase da Diferenciação, o ego e a personalidade emergente do bebé começam a identificar-se. Surge uma noção de separação física e psicológica entre sujeito (bebé) e o objecto (mãe). Este é o nascimento psicológico da criança. Utiliza outros recursos externos (ex. brinquedos) de forma a satisfazer a sua própria gratificação e é menos dependente da mãe para se auto recompensar.

De seguida surge a 2ª Sub- Fase do período Simbiótico, designado de ‘Practising’ (Oito meses, sensivelmente até aos quinze meses de vida). Esta é uma fase muito importante na vida emocional da criança. É neste período que a criança consegue utilizar as suas próprias pernas. De inicio, consegue elevar-se, a seguir agarra-se aos objectos – surgem os primeiros passos. É um período incrível, no ponto de vista da criança. O seu Ser assume um significado diferente. Controla o seu corpo, sente-se exuberante, há um sentido de omnipotência, de grandiosidade – literalmente, “o mundo está a seus pés”.

O sentido de exuberância, de interesse e grandiosidade é comprovado pelos pais e pela aprovação emocional que fornecem à criança. É um passo extremamente importante, que precisa de ser reconhecidopelos pais, para o desenvolvimento da auto-estima da criança, pois ela necessita de um “espelho” que permita reflectir a sua proficiência. É através dos adultos que as crianças que aprendem a valorizar o seu potencial.
 
Todavia, o cérebro da criança está em permanente desenvolvimento. A partir do primeiro ano e três meses até aos dois anos e meio, a 3ª Sub- Fase do Desenvolvimento entra em acção - Sub-Fase chamada a Fase ‘Rapproachement”. No inicio, a criança sente uma necessidade de separação da mãe. A criança ainda esta “apaixonada” pelos seus dotes de omnipotência, pelo seu narcisismo recém intitulado - sente-se “dona do mundo” - o mais importante é a gratificação de seus desejos e necessidades físicas, assim como das suas necessidades psicológicas. Nos estágios finais da Fase Rapproachment, o mundo da criança transforma-se radicalmente. O medo e a dor tornam-se numa realidade dolorosa para o sentimento de omnipotência e gratificação instantânea emocional. É confrontado com a ambivalência. Deseja separar-se fisicamente da mãe, mas por outro lado, não consegue permanecer seguro sem estar em contacto com a mãe. A criança adquire a noção da realidade e das suas próprias limitações. Isto é incrivelmente doloroso para uma criança, pois a fantasia de omnipotência desfaz-se a seus pés. O mundo agora apresenta-se diferente – “Querer, mas não poder”. Entre as mães esta Fase é apelidada de “A Fase Terrível dos 2 anos” (The Terrible Two’s). A criança parece fazer ‘birras’ por tudo e por nada. A criança tem a vontade de deslocar-se e adquirir autonomia, mas ao mesmo tempo, não consegue desapegar-se pois necessita de constante supervisão física (ex. prevenção de acidentes graves) e do apoio emocional da mãe. A Ferida Narcisista advém do doloroso sentimento de limitação/impotência. Perante a fantasia da grandiosidade e da omnipotência. É um período crítico para a criança. Se os progenitores conseguirem definir os limites sem humilhação, rigidez e punição (ex. ausência de afecto) a criança sente-se valorizada e o narcisismo transforma-se em auto- estima, criatividade e empatia. A criança faz uma idealização acerca dos pais através do sentimento de ser amado, amparada e estimada por alguém que é mais forte (segurança). De uma maneira ou de outra, a maioria dos adultos prosseguem nas suas vidas à procura desta imagem idealizada nos seus parceiros.

Regressemos à Fase do Rapproachment. Se não existe sensibilidade em relação às necessidades emocionais (ex. humilhação) e do potencial da criança a sua fantasia da omnipotência permanece activa na “construção”” da auto estima e de valorização. Continuará a idealizar os seus pais, em detrimento da própria auto-estima. Para a sua própria sobrevivência, a criança projecta a perfeição (fantasia) quanto aos seus pais e ostenta a necessidade que eles sejam uma imagem (ex. Espelho) dessa mesma omnipotência. Neste caso, o narcisismo interfere no auto conceito (estima) e passa a ser uma necessidade disfuncional (desejo insaciável em recuperar a sua idealização). Para a compreensão desta Fase sensível no desenvolvimento da criança é importante salientar que os progenitores tornam-se ‘self-objects’ – “ferramentas” utilizadas na procura da gratificação imediata das suas fantasias.  

A habilidade da criança em desenvolver empatia e separar o Ser de outra pessoa fica distorcida. Temas como a impulsividade e raiva tornam-se frequentes. A luta constante para “escapar” aos sentimentos da Ferida Narcisista conduz a criança a dissociar-se de certas partes emocionais si própria. O sentimento é demasiadamente doloroso para ser experimentado. A fantasia torna-se uma realidade fundamental para fugir à dor como consequência de não se sentir genuinamente amado. O Ego torna-se grandioso e a avaliação do valor pessoal e das conquistas da Vida giram em torno da procura (sede) de aprovação “alheia”, ao invés de conseguir apreciar um relacionamento onde existe respeito-mútuo, empatia e amor.

Por outro lado, quando a criança não sofre a humilhação derivado às suas limitações e vive num sistema de regras consistente e realistas (humanas) com tolerância, sente-se valorizada (potencial).

 Neste sentido, é dado mais um passo importante visando o desenvolvimento psicológico da criança. A SubFase seguinte é designada de ‘Desenvolvimento Objecto Consistente’ (Development of Object Constancy). Esta Fase ocorre sensivelmente entre o período compreendido dos 24 aos 36 meses de idade. É identificada especialmente pela aquisição de competências capazes de identificar as qualidades e os defeitos da mãe. Desenvolve a capacidade de reconhecer e tolerar a ambivalência no outro. A criança mantém a imagem internalizada da mãe e sente-se livre ao iniciar uma verdadeira separação física, mais relevante, e uma maior capacidade psicológica de permanecer “fora da alçada da mãe”, pois adquiriu a noção (espaço emocional) que a mãe volta. Estas Fases são a “estrada” da independência emocional, e mais tarde, física.

A criança vive uma ilusão (fantasia) quando não recebe empatia e o apoio emocional necessário para a regulação dos limites e auto estima. São estruturas secundárias que permitem à criança enfrentar o mundo, pois as primarias são precárias. Casos de crianças e adultos abusados, humilhados, negligenciados e desvalorizados são o que mais se encontra tanto na psicopatologia infantil, como na adulta. Desde desordens do comportamento ou hiperactividade nas crianças, às desordens de personalidade e depressão nos adultos: a traição do amor – o amor traído não faz sentido. 

Um dos factores do narcisismo é a dissociação da capacidade de empatia, dificuldade interpretar e sentir o outro como pessoa em vez da fantasia de amar a pessoa (para objecto de gratificação). A grandiosidade  - “sede insaciável” - em alimentar a falta de auto estima e a procura constante de objectos de auto gratificação imediata, são estruturas secundárias formadas para a sobrevivência emocional da alma, mas por outro lado, são como véus (Vidros Escuros) entre o ego e a alma.

Nos casos de intimidade entre adultos, estes procuram alguém que consiga apaziguar o sentimento de dor, consciente do ‘Amor Traído’. Obviamente, até certo ponto essa é a função dos casais (relacionamentos de compromisso e intimidade) para manter e promover a auto estima. A diferença da criança autónoma e amada, desenvolve-se na idade adulta, permitindo que esta consiga ver o ‘outro’ como uma pessoa única, sem recorrer à necessidade constante de afirmação e aprovação dos outros. Interpreta o sentimento de abandono como algo doloroso, mas não necessita de recorrer ao outro, como parte de si próprio, como objecto de gratificação e sobrevivência.  

Podemos concluir que em doses moderadas o narcisismo é saudável. Constitui parte da auto estima do ser humano, mas quando é uma compensação de forma a “mascarar” os medos (condutas de evitamento) torna-se numa pura solidão. Toda a criança que “carrega” uma imagem de conforto, corroborado pelos afectos, pode depender emocionalmente da mãe, com noção de limites de ambas as partes. Todos os casais que sentem que podem depender emocionalmente um do outro, aceitando sua privacidade e limitações, sentem-se livres nas suas relações. Não permanecem “acorrentados” à constante luta de um espelho das suas fantasias.

Recomendo:
--Margareth Mahler- “The Psychological Birth of the Human Infant”
--Mario Jacoby- “Individuation and Narcissism- The Psychology of Self in Jung and Kohut”
--Marion Solomon- “Narcissism and Intimacy”
--S M Jonhson- “Humanizing the Narcissistic Style”

Tanto no bom como no mau, boa sorte!

Dr. Miguel Mealha Estrada, PsyD, MBACP
Autsim Spectrum Disorders Specalist Unit,
Woolwich, London.

 email: santamaria@live.co.uk
Site: http://www.pedopsicoterapia.com/

Comentario: Agradeço ao Dr. Miguel Estrada pela sua colaboração e contributo para com o movimento da Prevenção (Mais Vale Prevenir Do Que Remediar). Proporciona ideias "recheadas" de conhecimento - ajuda-nos a pensar com perspectiva e emoção. As crianças são um "tesouro" demasiado nobre, digno para serem negligenciadas ou ignoradas. Elas representam um desafio para o desenvolvimento da própria espécie - quando nascem a Vida (evolução) proporciona-lhes o potencial e os adultos necessitam de fazer o seu "trabalho" de transformar essa potencialidade, com paixão, compromisso e integridade. Hoje crianças; amanhã são adultos. A Vida é uma longa caminhada...transformação. "Viver não custa; custa é saber Viver