Menos
Medicação - Mais Amor, Menos Doença: A Esperança da Criança.
“Um infinito
ardor
Quase triste
os veste,
Semelhante ao
sabor
Quen tem à
noite o vento leste.
Bailam na
doçura amarga
Da tarde
brilhante e densa
Tem a morte em
si suspensa.” Sophia de Mello B.
Andressen
Foi numa manhã
fria, com a neve que rodeava o hospital, fazendo das suas paredes brancas a
continuação do nada que se sentia lá fora. Logo de manhã, no hospital de
pedopsiquiatria estava a equipa à espera das novas listas de pacientes, sem os
conhecermos demos-lhe um rumo. A Maria pertence ao sector da Via Emocional, o
Pedro ao sector da Via de Condutas de Comportamento e a João à Via do
Neurodesenvolvimento.
Foi-me
entregue o João, aquele que eu vou delinear um rumo, mas que não escolheu o seu
destino e nunca cheguei a ver a sua cara. No relatório clínico especifica que é
muito activo, com problemas de concentração e hostil para com os seus colegas. Parece
mais um caso a juntar a muitos outros. Mas quem é ele? Como será a sua cara?
Qual è a sua história que nem ele provavelmente pode fazer senso de sonhos
perdidos, idealizações que cairam aos pés dele como areia que se escapa por
entre os dedos, como foi forçado a não amar aquilo que sente?
Tais questões
não são práticas, só possuímos cinco a sete minutos para decidir o que vai
acontecer ao João, como, possivelmente, o iremos tratar e uma agenda de 20
minutos para escolher a medicação certa, diz então assim o Pedopsiquiatra.
Decidi ir à
escola do João, que tem cinco anos de idade. Falei com a professora e ela
disse-me que realmente algo se passa de errado com ele pois é quase ímpossivel
de o ter na aula, distrai os alunos, e sai do seu lugar constantemente,
distraindo assim, os colegas e é muito difícil de controlar. Agradeci-lhe o seu
tempo e pedi para ver o João.
Apresentei-me
ao João e perguntei-lhe se queria brincar por um bocado. Ele perguntou-me “Brincar?
Porquê?” eu respondi-lhe que era para o conhecer melhor. Não houve
resposta. Gostaria de acrescentar que
uma criança que não tem prazer em brincar, e que por espontaneidade vontade, não
sente o benefício do que é fazer um elo/vínculo para com outra pessoa que manifesta
interesse em si, essa criança perde a sua essência.
Mas será ele
próprio que não tem interesse em brincar, ou será que lhe retiraram a
capacidade de se vincular com alguem, até mesmo dentro de um sitio onde ele se
sente seguro em termos físicos, por ex a escola?
Tentei então
falar com ele, mas ele limitava-se a responder “Não sei…”.
Qualquer bebé de quatro meses, com um desenvolvimento normal, começa a compreender que o seio
da mãe que o alimenta lhe proporciona segurança, que lhe promete uma vida com
amor, consegue conceptualizar que esse mesmo seio, é aquele que lhe dá
frustração, aquele seio que nem sempre pode estar presente quando ele quer, que
projecta nesse seio o mau que há no mundo, e é nesse periodo, em que a
frustração é regulada por uma mãe atenta, e assim, começa a ter noção que o
seio bom é ao mesmo tempo o seio mau, que a qualidade e a percepção do que é o
amor se transforma no psiquismo do bébé, e a ambivalência, se for bem regulada
pela mãe, se transforma pouco a pouco em paciência, e o amor, acima de tudo, prevalece.
No caso do João,
diagnosticado com Problemas de Comportamento com comorbilidade com
Hiperactividade, fica um recluso, um problema, mais um alvo de um plano de
comportamento do qual fico responsável por delinear. Ou seja, estamos a ser
reactivos ao problema, ao invés de elaborar estratégias práticas de prevenção.
Num modo existencial, somos iguais ao João no modo de reagimos.
Se analisarmos
a história do João, há sonhos perdidos, amores paternais não correspondidos por
idealização e narcisismo paternal, mas no final, o doente é o Joao...
Agora, que a
sua coerência cerebral já foi mudelada para a reactividade com poucas
possibilidades de apaziguamento cortical, cabe-nos a nós profissionais,
transformar um cérebro de uma criança, em que a memória de todo o trauma que não
é visto a olho nu, já se estende pelo seu sistema periférico, gravado nas suas
celulas, com uma expectativa de perigo séria instalada.
Por quanto
tempo vamos ser reactivos e não estabelecer estratégias familiares de prevenção?
Quem mais tarde vai suportar e pagar estas consequências é a sociedade. Por ex.
hospitalizações, instituições, consultas, etc.
A minha preocupação,
além da infelicidade da criança, é o modo estas crianças são encaradas perante
uma sociedade negligente, visto não possuir conhecimento actualizado, e
respostas concretas, sobre o problema destas crianças, assim como recursos
necessários. Pensarmos que basta arranjar uma vinculação segura (instituição
e/ou família), tudo o resto irá correr bem, assim fala a arrogância da ignorância.
Muitos dos
casos podem ser resolvidos nos primeiros dois anos de vida, mas quem pensa “Ah,
estes problemas de comportamento são normais da idade.” acaba por “assassinar”
o desenvolvimento saudável da criança. A criança precisa de acreditar que no futuro
consegue ser feliz, que consegue ter relações de qualidade, que aprende a perdoar,
e muito mais importante, e o cerne de tudo, consegue amar aquilo que realmente
sente.
E depois
negamos toda essa responsabilidade com medicação, não
para resolver o problema mas sim para o adormecer e nao nos aborrecer muito.
Mas, e a
felicidade da criança?
Dr. Miguel Estrada
Extracto e
traduzido do artigo “What about me?” publicado em 2009 na CAMHS (Child and
Adolescente Mental Heath Service), Inglaterra.
Comentario: Os meus agradecimentos ao Dr Miguel Estrada pela sua colaboração no "Mais Vale Prevenir Do Que Remediar". Na minha opinião, a sociedade portuguesa ainda não presta os devidos cuidados às crianças. Algumas crianças vulneráveis são negligenciadas, com a conivência de alguns adultos. Arrisco a afirmar que, provavelmente, se elas votassem e tivessem participação civica e jurídica nos tribunais, por exemplo se houvesse um tribunal para julgar adultos, a realidade seria diferente. Uma noticia no JN, de 20/10/2011, referia, segundo o presidente do grupo Psiscolas, a orientação do Ministério da Educação, para este anos lectivo quanto à contratação de psicólogos para as escolas, possa significar que um psicólogo tenha de prestar serviço em dois ou três agrupamentos escolares, um rácio de "um técnico para mais de cinco mil alunos". Caso se venha a concretizar esta situação preocupante, recordo a frase do dr Miguel Estrada "Mas, e a felicidade da criança?"
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